Todo o resto...
"Existe o certo, o errado e todo o resto".
Esta é uma frase dita pelo ator Daniel de Oliveira representando
Cazuza, em conversa com o pai, numa cena que, a meu ver,
resume o espírito do fime . Aliás, resume a vida.
Certo e errado são convenções que se confirmam com meia
dúzia de atitudes. Certo é ser gentil, respeitar os mais velhos,
seguir uma dieta balanceada, dormir oito horas por dia, lembrar
dos aniversários, trabalhar, estudar, casar e ter filhos, certo
é morrer bem velho e com o dever cumprido.
Errado é dar calote, repetir o ano, beber demais, fumar, se drogar,
não programar um futuro decente, dar saltos sem rede.
Todo mundo de acordo?
Todo mundo teoricamente de acordo, porém a vida não é
feita de teorias.
E o resto?
É tudo aquilo que agente mal consegue verbalizar,
de tão intenso? Desejos, impulsos, fantasias, emoções.
Ora, meia dúzias de normas preestabelecidas não dão
conta do recado.
Impossível enquadrar o que lateja, o que arde, o que grita
dentro de nós.
Somos maduros e ao mesmo tempo infantis, por trás de nosso
autocontrole há um desespero infantil. Possuímos uma
criatividade insuspeita: inventamos músicas, amores, e
problemas, e somos curiosos, queremos espiar pelo buraco
da fechadura do mundo para descobrir o que não nos contaram.
Todo o resto.
O amor é certo, o ódio errado, e o resto é uma montanha de
outros sentimentos, uma solidão gigantesca, muita confusão,
desassossego, saudades cortantes, necessidades de afeto e
urgência sexuais que não se adaptam às regras do bom
comportamento. Há bilhetes guardados no fundo das gavetas
que contariam outra versão da nossa história, caso viessem
a público.
Todo o resto é o que nos assombra: as escolhas não feitas, os
beijos não dados, as decisões não tomadas, os mandamentos
que não obedecemos, ou que obedecemos bem demais - a
troco de que fomos tão bonzinhos?
Há o certo, o errado e aquilo que nos dá medo, que nos atrai,
que nos sufoca, que nos entorpece.
O certo é ser magro, bonito, rico e educado, o errado é
ser gordo, feio, pobre e analfabeto, e o resto nada tem a ver
com esse reducionismo: é nossa fome por idéias novas, é
nosso rosto que se transforma com o tempo, são nossas
cicatrizes de estimação, nossos erros e desilusões.
Todo o resto é muito mais vasto.
É nossa porra-louca, nossa ausência de certezas, nossos
silêncios inquisidores, a pureza e a inocência que se mantêm
vivas dentro de nós, mas que ninguém percebe, só porque
crescemos.
A maturidade é um álibe frágil.
Seguimos com uma alma de criança que finge saber
direitinho tudo o que deve ser feito, mas que no fundo entende
muito pouco sobre as engrenagens do mundo.
Todo o resto é tudo que ninguém aplaude e ninguém
vaia, porque ninguém vê.
(Martha Medeiros)
29 janeiro 2007
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